Há alguns anos, numa palestra da historiadora Anita Leocádia Prestes na Uneb, vi a colega se referir aos tempos da Ditadura Militar como “passado negro”. Olhei o auditório lotado de estudantes negros e negras, e logo percebi o incômodo. Na hora das perguntas, um professor apontou que a expressão usada pela historiadora era racista, sugerindo que ela a deixasse de usar.
Anita é a única filha do casal Olga Benário e Luiz Carlos Prestes. Com uma história familiar heroica e igualmente trágica, Anita não conheceu sua mãe, uma judia-comunista, entregue grávida pelo governo Vargas à agentes da Gestapo. No auditório imaginei que a professora da UFRJ fosse pedir licença e se retirar da palestra. Nascida em fins de 1936 na Alemanha, pouco antes de sua mãe ser morta num campo de concentração, tal atitude seria compreensível. No entanto, a historiadora educadamente pediu desculpas e disse que iria corrigir o vocabulário.
No dia 1º de novembro, em entrevista à EBC, a ministra da Igualdade Racial Anielle Franco falou da importância de uma educação antirracista no Brasil. Citando expressões que são entendidas como racistas pelo movimento negro, como “denegrir”, à qual ela juntou a frase “saímos desse buraco negro”, usada como forma de dizer que alguém saiu de uma situação ruim, Anielle pretendeu chamar a atenção para a naturalização do vocabulário racista entre os brasileiros.
A fala da ministra provocou celeuma na extrema direita, que a acusou de “estupidez” e de usar uma estratégia de controle social por meio da linguagem, o que seria... “fascismo” (sic). Mas também incomodou setores da esquerda.
As palavras têm significado, e qualquer pessoa nascida antes dos anos 1990 sabe o quanto era comum o uso de expressões preconceituosas. No que tange ao capacitismo, por exemplo, se um texto está mal escrito, não é incomum que se diga tratar-se de um texto “capenga” e não raro pessoas se referem a um “diálogo de surdos” para dizer de gente que não consegue conversar. Como se pessoas surdas, que usam a sofisticada Língua Brasileira de Sinais, não dialogassem.
O preconceito está inscrito naquilo que somos e é expresso em grande medida por meio da linguagem. O brasileiros tem percorrido um longo caminho para deixar para trás o fraseado preconceituoso, por vezes envolto em erudição. Num livro famoso publicado em fins dos anos 1990, no capítulo dedicado à Capistrano de Abreu, consta que se tratava de um “autêntico sertanejo, um caboclo feio, matuto, agreste e desagradável”.
Quando uma pessoa negra, uma mulher, um LGBT, uma pessoa com deficiência ou qualquer pessoa que tenham um mínimo de letramento nessas questões lhe aponta seu preconceito, você não precisa concordar com tudo, mas o ideal é se desculpar e refletir sobre o assunto. Anita Prestes não teve menos respeito da sua plateia porque percebeu o seu erro. Ao contrário, saiu maior.
*Carlos Zacarias de Sena Júnior, graduado em História pela Universidade Católica do Salvador (1993), mestre em História pela Universidade Federal da Bahia (1998) e doutor também em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2007).
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(*) Publicado no Jornal A Tarde, (Coluna do autor), edição de 08.12.2023.