Não tenho muita ideia do que seja educar com o c*. Também sei quase nada de semicondutores e genética molecular. Se me perguntam sobre o tempo da escravidão, faço um esforço para lembrar dos anos que me dediquei ao assunto. Se me pedem entrevistas, indico os especialistas. Há muita coisa que é feita na universidade da qual sei muito pouco, não sei nada, ou ignoro.
Nos últimos dias minhas bolhas foram inundadas por uma espécie de pânico moral. Diante da performance de uma mulher trans, que ao oferecer uma palestra na UFMA, exibiu seu bumbum, cantarolando um funk de apelo sexual, uma enxurrada de ataques e acusações sucederam. O perfil da deputada Bia Kicis (PL-DF) exibiu a performance, apontando que o evento havia sido custeado com dinheiro público. Mas a grita não foi só da extrema direita. Na universidade, pessoas que normalmente são alvos de ataques, transformaram-se em haters, espumando de ódio contra a autora da performance.
A universidade não forma intelectuais, mas especialistas. Não obstante, não há outro lugar onde se possa adquirir conhecimento em temas sobre os quais não nos tornaremos especialistas. A universidade nos oferece condições e estimula a curiosidade, então muitos podem se tornar intelectuais, alguns dos quais, intelectuais públicos. É isso que faz com que jornalistas busquem professores para opinar, mas se me procuram para falar sobre o 2 de Julho ou o Carnaval, que supõem que eu, como historiador, posso tratar, eu indico algum colega, pois não sou especialista.
Portanto, mesmo sabendo mais do que o cidadão comum sobre o que se faz na universidade, mesmo tendo alguma noção sobre novas epistemologias ou fazendo uma ideia mínima sobre os caminhos que levam um pesquisador a produzir conhecimento sobre semicondutores ou genética molecular, não estou habilitado a emitir opiniões públicas sobre esses assuntos.
Em 2018 fui alvo de um processo judicial movido por um vereador que pretendia impedir a mim e outros colegas de ensinar uma disciplina sobre o golpe de 2016. Meus defensores, na esfera pública e universitária, e meus advogados constituídos argumentaram, sobretudo, em torno do artigo 207 da Constituição, que nos confere autonomia didático-científica e pedagógica, e dos dispositivos que a universidade dispõe para controlar o que se pesquisa e se ensina.
Espanta que tantos colegas e membros da universidade se disponham a atacar uma performance em que as nádegas foram exibidas. Eu pretendia conhecer mais sobre a tal pedagogia para ser capaz de opinar. Antes, contudo, eu sinto-me obrigado a defender a autora da palestra e da performance, ainda mais porque se trata de uma mulher trans e porque um dia fui defendido diante de gente ignorante que me atacou, sem ter ideia sobre como a universidade funciona. Ajo assim não porque desejo educar com algo que não seja meu conhecimento, mas por , algo que parece faltar a muitos colegas.
*Carlos Zacarias de Sena Júnior, graduado em História pela Universidade Católica do Salvador (1993), mestre em História pela Universidade Federal da Bahia (1998) e doutor também em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2007), Professor do Departamento de História da UFBA.
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Publicado no Jornal A Tarde, (Coluna do autor), edição de 25.10.2024.